EUPHORIA | CRÍTICA
Temos formas de relatar alguns problemas que envolvem nossa sociedade e às vezes só é possível fazê-lo arrancando o band-aid de uma vez, e mostrando a realidade como ela é: difícil de engolir e de nos fazer querer enxergar. Me pergunto, contudo, o quão realista, legítimo e explícito alguns temas precisam ser retratados para que eventualmente nos desperte o poder da reflexão? A resposta é simples com Euphoria: quando nos tira da zona de conforto.
Os gatilhos foram disparados a fim de mostrar uma dura realidade que poucos se arriscam em abordar. Ousada. Bravo! Mas qual é o limite de gatilhos para diferentes tipos de público? Saúde mental (depressão, ansiedade, transtorno bipolar, transtorno obsessivo-compulsivo, etc.), alcoolismo, drogas, overdose, perda familiar, câncer, homofobia, transfobia, pedofilia, relacionamento abusivo, psicopatia, violência doméstica, estupro, coerção, tráfico, diferentes tipos de assédio, gordofobia, pornografia, bullying, divulgação de vídeos íntimos, aborto, etc.
A construção e introdução dos personagens seduz o público, mostrando desde criança, todo o caminho percorrido até ao ponto da história em que estamos assistindo. Ao passo que nos sentimos íntimos de quem está na tela, como se conhecêssemos a fundo aquelas pessoas e suas verdades escondidas.
SAÚDE MENTAL & DROGAS
Inegavelmente é preciso avaliar o impacto social de um material e Euphoria é propositalmente intensa. Ela não é uma série produzida para ser fácil de ser consumida, é uma catarse frenética que nos conta uma história densa por meio da narrativa e das viagens alucinógenas da protagonista Rue, interpretada por Zendaya
Rue é uma adolescente que foi diagnosticada ainda criança com diversos transtornos mentais que implicam diretamente na sua qualidade de vida, e que apesar de não justificáveis, a levaram desde muito nova a buscar saídas perigosas para lidar com estes problemas.
Euphoria nos ilustra as viagens de Rue em seus momentos de uso de substâncias, mas também como sua cabeça funciona em um dos momentos mais obscuros da vida de uma pessoa: a adolescência e como ela lida com as situações que a cercam. Se torna fácil se perder entre o que é realidade e o que são as alucinações ou um misto de ambas, nos fazendo ter ainda mais empatia por Rue que busca fugir de si mesma pelo funcionamento diferente de seu cérebro que quebra as regras do que é considerado normal.
Aperte os cintos, porque em 8 episódios você se torna passageiro dessas viagens que talvez não estivesse pronto pra fazer. Você confia na narração da personagem e acredita em suas histórias, mesmo captando sinais de que sua narração seja em grande parte vinda de fofocas que foram ditas por outras pessoas e estão sendo replicadas por ela. A propósito, ela também está constantemente sob efeito de substâncias, fazendo sua narração não muito confiável.
Os perigos que a própria mente é capaz de nos colocar, principalmente quando enfrentamos transtornos que nos compõem quanto indivíduo e não há como reverter, mas tratar. Euphoria mostra a angústia de quem enfrenta estes problemas e o quanto essas pessoas são julgadas e incompreendidas, levando- as ao desespero pela busca não calculada de uma calmaria, sensação de paz, em meio ao inferno que a própria cabeça pode ser.
A instabilidade de Rue é real, é verídica e mais comum do que a sociedade gosta de admitir. Apesar de mostrar as graves consequências de optar pela saída errada, ainda assim, a sensação de alívio ao conseguir uma fuga a todo custo em meio aos próprios demônios, soa como porta de emergência.
GÊNERO E SEXUALIDADE
Inesperadamente Euphoria traz uma abordagem diferente quanto à gênero e sexualidade. O diferente é aceitável e as descobertas da adolescência são tratadas com naturalidade, em um período da vida que encontrar a própria identidade soa como uma guerra mundial interna.
A personagem Jules, uma adolescente trans interpretada por Hunter Schafer, traz riqueza ao elenco e nos leva para uma curiosa aventura em seu próprio universo que os demais, com exceção de Rue, conhecem. Todavia, nasce um romantismo perigoso entre a dependência emocional de Rue quanto à Jules, e a responsabilidade moral que isso pode causar.
Ninguém deve ser o pilar total de sustentabilidade emocional de alguém, como a série sugere. Apesar de alguns personagens alertarem a protagonista sobre isso, a narrativa nos leva a julgar Jules como egoísta, quando a mesma não cede ao papel de enfermeira por tempo integral de Rue, quando na realidade, só está vivendo a própria vida.
A hipocrisia também passa na sua frente e acena. Os estereótipos de machões são expostos sem compaixão. Sam Levinson joga a masculinidade frágil na mesa de discussão e aborda inclusive orientações homoafetivas reprimidas.
NUDEZ | PORNOGRAFIA | EMPODERAMENTO E BODY POSITIVE
Euphoria aborda sem pudor uma temática evitada em diferentes áreas das grandes produções, a nudez masculina, que até os dias atuais é tratada como tabu. As cenas retratam a nudez de forma natural, como deveria ser, ainda assim, chocou a muitos que hipocritamente estão acostumados com a nudez gratuita e a hiperssexualização e objetificação do corpo feminino nas telas.
Em tempos de falta de responsabilidade quanto a imagem do outro e da hiperexposição na internet, a série joga uma verdade sobre as famosas nudes: a moeda de troca dos atuais relacionamentos. A pressão de parceiros ou supostas provas de amor com o tal item proibido desejado, mas que vaza num piscar de olhos perante as vinganças gratuitas ou cobiça por destruir uma reputação que não seja a própria.
A romantização da pornografia também é posta em pauta. A crítica surge da normalização da encenação e como ela não funciona na vida real. A série transita em diferentes pontos de vista, mostrando as consequências desse consumo e como muitos homens (principalmente aqueles que estão iniciando suas vidas sexuais) acreditam veemente que filmes pornôs traduzem a realidade na lata – não funciona bem assim.
Bela surpresa com a personagem Kat, interpretada pela incrível Barbie Ferreira (filha de mãe brasileira), que demonstra como mulheres podem apreciar sacanagem ou pornografia – quebrando a figura única e recatada que é esperada de mulheres sob a visão machista. Entrando como uma das personagens com os arcos mais interessantes, Kat quebra a barreira do preconceito em relação ao próprio corpo e dá uma aula de amor próprio.
A jovem demonstra que mulheres podem fazer o que desejarem fazer, sem receio de julgamentos, seja no simples fato de usar uma roupa sem se preocupar com o realce do tecido em suas curvas ou buscarem uma transa casual sem querer um relacionamento em troca. O choque é ver uma mulher fazendo a mesma coisa que muitos homens fazem, e o absurdo de quem assim acha, vem da própria camada de machismo e misoginia que está incrustada na pele.
RELACIONAMENTO ABUSIVO E ABORTO
Um dos maiores trunfos da série é exibir a toxicidade masculina e as consequências de uma criação machista e opressora que refletem não somente na própria pessoa, mas em toda uma sociedade que adoece em conjunto.
Nate (Jacob Elordi) e Mckay (Algee Smith) são os maiores exemplos da série, que reproduzem suas próprias frustrações, caos, problemas internos ou familiares em suas companheiras, resultando em relacionamentos abusivos, tóxicos e violentos.
A narrativa também pauta a responsabilidade que grandes cobranças vindas dos pais, ponderadas em seus próprios desejos infundados ou não concretizados, baseados na própria trajetória de vida podem causar.
É nauseante assistir o comportamento de Maddy (Alexa Demie) sob o comportamento abusivo de Nate – o que decepciona no fechamento de arco do casal. É de grande necessidade que os produtores ilustrem na próxima temporada o ciclo do abuso em relacionamentos tóxicos, para que o público entenda o porquê Maddy ainda acredita que o que Nate tem a oferecer é amor – sendo que não, não é e nunca foi.
A intimidade que Euphoria divide entre Cassie (Sydney Sweeney) e o público sobre aborto é de uma pessoalidade tão grande que o resultado é como se vê: incensurável. É quase como se fosse invasivo assistir a dor do momento, elucidando que essa escolha é única e exclusiva da mulher, sendo um caso de saúde e que apesar da decisão, ela não é fácil e ninguém a tomaria se não fosse preciso. Mckay é o primeiro a pular do barco quando a gravidez não planejada vem à tona – a vida copia a arte e a arte copia a vida – o número de crianças sem o registro do pai na certidão de nascimento está aí para comprovar. O abandono paterno é fato e vem muito antes do julgamento de uma classe machista.
FOTOGRAFIA | SONOPLASTIA & MAQUIAGEM
Uma fotografia fantástica e um jogo de câmeras que hipnotiza, somado a dualidade de cores que penetra os olhos de quem assiste, fazendo um jogo entre luzes e sombras que instiga e deleita. As nuances também conversam com a maquiagem chamativa, colorida e no mínimo ousada com a não economia de muito brilho e glitter.
A sonoplastia é outro espetáculo à parte, não por menos, Drake e Future também foram responsáveis pela produção e sem dúvida deram seu toque em relação a trilha sonora. Zendaya também impressiona com a faixa “All For Us” – encenada ao final da temporada em parceria com Labrinth.
O PERIGO DOS GATILHOS E A RESPONSABILIDADE DE INDICAÇÃO DA SÉRIE
Antes de mais nada, é preciso deixar explícito o respeito pela série e toda a sua profundidade e coragem em retratar tantos temas que muitos colocam pra baixo do tapete. Mas há ressalvas, podendo também apresentar malefícios como consequência dos inúmeros gatilhos presentes na trama, que são disparados um atrás do outro em diversos temas que fica difícil imaginar alguém que não tenha sido atingido.
Mas acalme-se, os temas em debate são essenciais a serem discutidos, talvez só esteja chegando em pessoas que não devessem consumir a série e o problema talvez não esteja na produção (que inclusive, faz alertas antes dos episódios), mas para quem você está indicando a série – cuidado. Todos temos papéis de responsabilidade que devemos desempenhar.
Não indique a série para pessoas que já enfrentaram ou enfrentam problemas relacionados a saúde mental ou já passou qualquer trauma relativizado com os gatilhos citados no início do texto. Cada pessoa tem sua própria forma de reagir a algo, e sua opinião particular ou vivência própria de algo não vai impedir que isso afete drasticamente alguém.
Se você estiver enfrentando algo agora ou não estiver muito bem, talvez Euphoria não seja indicado pra você. Se você sentir algum mal-estar assistindo, pare, e não insista. Está tudo bem não assistir a série pelo boom, existem diversas séries legais a serem consumidas.
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NOTA:
TRAILER:
Marcella Montanari
Uma jornalista um tanto quanto nerd, apaixonada por conteúdo, música, filmes, séries e afins. Fundou o blog para dividir as alegrias e as angústias de uma vida que surpreende a cada novo capítulo.